"Para o Francisco Oliveira com desejo de boas leituras um abraço
Gonçalo Naves
14.12.2017"
A das Artes Editora em Sines, estreia-se com o segundo romance de um jovem autor, Gonçalo Naves, que aos 18 anos publicou autonomamente a sua primeira obra.
Excerto:
Sempre chegam as duas horas da madrugada e um fiozito de barulho começa lento no escuro arrastando-se aos tropeções, um som próximo e distante entre o negro severo alcatrão e todos os ouvidos do bairro, porque a bem ver não há peito capaz de descansar nas horas em que sem dar cuidado a solidão ganha uma força imbatível. É a hora em que me ergo me aconchego à janela e para lá da janela uma locomotiva que não é locomotiva nenhuma salpicando-me os vidros de cores intermitentes, num chiar as rodas dos caixotes arranhando a calçada e de quando em quando há uma pedrita de extremidades mais salientes e, então, o caixote ameaçando um trambolhão dois trambolhões três e vai daí num vigor de ferro implacável delicado sem dar sua conta uma mão imobilizando-o em equilíbrio, mão que está um braço para trás do corpo, enquanto a locomotiva que não é locomotiva nenhuma ergue uma tenaz informada sobre as sensibilidades dos caixotes elevando-os tal qual a gente eleva um filho um sobrinho um neto, apresentando-os ao mundo. É a hora dos senhores do lixo e os senhores do lixo corteses perante a noite, com ínfimo engenho levantam os mapas da escuridão num trabalho que é feito com mãos com toque de artesão, imbatível fugaz pressa em terem as coisas feitas com propriedade que não dão conta de mais nada, não se agitam com movimento algum por saberem numa sabedoria quase inata de que a noite pode nada contra eles. É gente que não existe para nós, não aquece nem arrefece, tanto se nos dá como se nos deu, que quando com eles partilhamos uma rua nunca se atrevem no nosso caminho e se por infeliz acaso as nossas trajetórias são sobrepostas o que acontece é passarmos por dentro deles não tocando em coisa nenhuma. As bocas cerram-se para sempre e só os peitos falam, só os nossos peitos comunicam e agora me despeço deles num submisso silêncio vendo-os pularem para cima da locomotiva de abalada quedando tudo numa beleza mais triste.
Na apresentação do livro o autor com Rosa Azevedo e o livreiro Joaquim Gonçalves.